“Você precisa seguir o seu coração.” Quem nunca deu esse conselho a um adolescente em crise vocacional, um jovem com dilemas românticos ou alguém perdido nas opções do iFood? Péssima ideia.
No entanto, esta é a boa-nova vigente nas frases inspiracionais de WhatsApp, no cânon das comédias românticas, na discografia das divas pop, na biblioteca de filósofos inquietos. E era a (enganosa) boa notícia da serpente no antigo Jardim.
A resposta não está em você
Crer em si mesmo não é novidade. Mas seguir o próprio coração está no credo da cultura contemporânea como promessa de liberdade e boa vida. Essa é a promessa dos sacerdotes da mídia pop, do mercado financeiro, das ideologias políticas — e dos pastores ateus.
Não, não siga o seu coração. Com as sucessivas mudanças no jeito que vemos nós e o mundo, chegamos no momento cultural em que seguir o coração é confirmação última de verdade. “Não sabe que caminho seguir? A resposta está em você.” Em vez de ajustar nossas emoções à afinação da realidade objetiva, distorcemos o mundo para servir à desafinação do nosso coração.
A vida não se trata mais de trazer nosso “ser interior” para o ritmo e a harmonia da beleza, bondade e verdade. Agora é sobre encontrar nossa própria melodia interior, marchar ao nosso próprio compasso, tocá-la alto e conduzir o máximo possível do mundo ao nosso redor para acompanhar nossos hinos de autonomia.
— Thaddeus J. Williams, Don't Follow Your Heart
No fundo, acreditamos que seguir o nosso coração nos levará a uma estrada aberta rumo à Terra Prometida, quando, na verdade, só nos trancará numa claustrofóbica caixa de espelhos onde você não vê nada além de si mesmo.
Inventário de emoções
Talvez nos falte lucidez e autoconsciência para reconhecer a fragilidade, falibilidade e futilidade do nosso próprio coração. O mesmo coração que cremos organizar a vida é o que descarta amizades no primeiro sinal de instabilidade, rasga votos de casamento no primeiro lapso de infidelidade, que desiste da cumplicidade. Que mobiliza regimes totalitários, corporações abusivas e igrejas manipuladoras.
Pense bem. Estamos falando do dispositivo que oxigena o corpo e conduz a alma. Nosso coração está por trás do que há de mais belo e criativo nas galerias de arte e nos abraços mais sinceros no quarto de casa. Fato. Mas está por trás também dos piores crimes e ofensas. É inconstante.
Thaddeus J. Williams sugere que façamos um breve inventário diário das nossas emoções. Nas últimas 24 horas você: se sentiu confiante ou inseguro sobre si mesmo? Sentiu-se aliviado como se a vida fosse um eterno primeiro dia de férias ou irado como se ela fosse um congestionamento infinito? Você se sentiu em paz com sua identidade ou cansado de forjá-la a qualquer custo?
Se a sua humanidade estiver em dia, imagino que tenha sentido de tudo um pouco — ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Nosso coração é como a água que transita das margens idílicas do Tietê no interior aos canais poluídos da capital.
"Em quem você vai confiar para te dizer a verdade sobre você mesmo — nas suas próprias emoções vacilantes ou no que Deus diz?"
— Thaddeus J. Williams, Don't Follow Your Heart
Como partir o seu coração
Nosso coração não é confiável. Um teimoso transtorno bipolar existencial nos persegue torcendo a nossa harmonia, desfazendo nossas relações e subindo os índices de ansiedade e depressão (não surpreendentemente).
E se o caminho para a liberdade da boa vida estiver não no servir a si mesmo mas no obedecer o único de coração perfeito? E se o fim da claustrofobia do si mesmo estiver na estrada para o outro? Esta é a sabedoria bíblica e o tipo de vida prometido pela boa notícia da cruz — que deu fim a tudo que começa e acaba em si mesmo.