A espiritualidade dos hábitos e disciplinas ordinárias têm avançado para o hype de parte significativa dos cristãos brasileiros, que tem descoberto as raízes antigas da formação espiritual que explora a vida interior, os ritmos litúrgicos e práticas intencionais de aprendizado. Uma espiritualidade que combina com tons pastéis e paleta terracota. O mercado editorial, criadores de conteúdo digital e até um visual específico comprovam esse entusiasmo que, penso, embora às vezes diluído pelo mero apelo estético, é providencial. Por quê?
Mais tempo com Deus
Examinando a minha própria caminhada com Jesus e ouvindo irmãos e irmãs em diferentes momentos de vida, tenho chegado à conclusão de que todo cristão sabe o que fazer, mas não sabe por que e como fazer o que se deve fazer. Explico. Quantas vezes você já ouviu uma pregação encorajadora e se deu conta de que o caminho para viver a mensagem que foi pregada se resumia ao básico da jornada cristã? Ler mais a Bíblia, orar mais, passar mais tempo com a família de fé. Eu mesmo me lembro de diversas conversas em pequeno grupo nas quais o desfecho era: “Pois é, o que precisamos fazer é ter mais tempo com Deus.”
Nenhum discípulo nasce pronto. É uma longa jornada de obediência, um processo que exige mudança total de perspectiva.
— Davi Lenço
Esta é a palavra: tempo. Vejo que muito da distorção, desconexão e desordem se dá não pela falta de tempo, mas a falta de direção no que fazer com o tempo que nos é dado.
Honestamente, passamos a depender do excesso de atividades e ocupações cotidianas como desculpa para uma espiritualidade superficial. Quase como um alívio — “Realmente, seria muito bom ter mais tempo com Deus, mas, sabe como é, tenho trabalhado muito.”, “Concordo que é importante ter uma vida devocional ativa, mas meus filhos exigem muita atenção.”
Perdemos de vista que o Senhor detém o senhorio sobre tudo que usamos como álibi para negar o tempo com Ele. Não pense que você é menos digno de se deleitar na presença de Deus por ser atarefado demais — e nem que Ele é indigno do seu amor por que seu excesso de tarefas o torna desnecessário. Em termos diretos: o Senhor ama e se aproxima de gente comum, cheia de coisa pra fazer. Afinal, Jesus chamou pescadores ocupados.
Todos estamos vivendo de acordo com um determinado regime de hábitos, e esses hábitos moldam a maior parte de nossa vida. Um hábito é um comportamento que ocorre automaticamente, repetidamente e frequentemente inconscientemente. […] Mas só porque não escolhemos nossos hábitos não significa que não os tenhamos. Pelo contrário, geralmente significa que outra pessoa os escolheu para nós, e geralmente essa pessoa não tem nossos melhores interesses em mente.
— Justin Whitmel Earley / The Common Rule, p. 7
Uma formação espiritual constante
O que falta para nós é o discernimento e a direção para delinear hábitos, rotinas e liturgias que nos insiram em uma jornada de formação espiritual constante, prática da presença de Deus constante. Precisamos de uma regra para a vida. Uma regra de vida pode:
Ajudar pessoas consumidas pelo acúmulo de tarefas diárias a descansar;
Curar pessoas exaustas pelo excesso de demandas da vida;
Reorientar a atenção de pessoas dispersas pelos ruídos e distrações da cultura contemporânea;
Acalmar a alma conturbada de pessoas torcidas pelo enxame de ansiedades cotidianas (1Ts);
Arrancar nossos corações dos deuses falsos da cultura e devolvê-lo ao único Rei verdadeiro;
Resgatar pessoas da superficialidade e conduzi-las a uma vida mais profunda;
Fortalecer laços e relações para pessoas isoladas pela solidão;
Reintegrar a fé dualista, conectar o evangelho ao dia a dia;
Despertar sabedoria em uma cultura viciada notícias falsas e entretenimento rápido;
Forjar a virtude da paciência contra o vício da pressa; do deleite ao invés do consumo;
Uma regra de fé pode, acima de tudo, arar o solo para o cultivo e florescimento do que mais ansiamos e precisamos: amar a Deus e amar as pessoas.
Jesus respondeu: “‘Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de toda a sua mente’. Este é o primeiro e o maior mandamento. O segundo é igualmente importante: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’.
— Mateus 22.38–39
Mas, eu sei, regra é uma palavra estranha.
“Não siga as regras”
Para herdeiros ocidentais do Iluminismo, de um histórico de opressão política e das promessas da revolução afetiva, é de se esperar este espanto. Somos avessos à autoridade. Crianças protestam contra pais, povos protestam contra políticos, corações rebeldes recusam o Rei. Além do mais, não fomos salvos pela graça? Melhor deixar a lei pra lá. Esta repulsa cultural, embora muitas vezes legítima, é suspeita. E o tempero brasileiro a ressalta.
Estamos na cultura do improviso, do “segue o fluxo” e onde se faz tudo “no susto”. Esta é a terra onde o drible milagroso vale mais que a consistência tática e o treino rigoroso. Somada a isso, a tendência contemporânea de sobrepor o que eu sinto ao que eu faço, penso e até mesmo creio. O sentimento legitima a experiência.
Mesclada aos vestígios culturais, uma série de preconceitos e desconfianças tem sido gestadas internamente na igreja evangélica brasileira, que reativamente associa termos como “liturgia”, “disciplinas” ou “catecismo” ao catolicismo romano. Nossa espiritualidade espontânea e afetiva teme que a formação espiritual ordinária, repetitiva e, digamos, roteirizada, atrofie nossa paixão por Cristo. Não que não haja virtude na “espontaneidade espiritual” típica do evangelicalismo brasileiro. O problema é que a dependência exclusiva de uma virtude torna-se um vício, idolatria.
Amar é um exercício
O que nos esquecemos é que o amor é fruto da paixão refinada a longo prazo. E o amor é a finalidade da formação espiritual. Traçamos roteiros para a espiritualidade por amor a Cristo e para amar a Cristo, por amor às pessoas e para amar as pessoas. Não há fórmula fácil para o amor.
Regras, disciplinas e liturgias, obviamente, não excluem a graça, mas são instrumentos para que ela nos transforme radicalmente.
A vida formada no profundo não é possível sem um reordenamento intencional da vida. […] essas práticas nos ajudam a receber e expressar o amor de Deus de uma maneira profunda.
— Rich Villodas / A Vida Profundamente Formada, p. 28
Esperamos que o amor venha num assalto repentino, como numa epifania. Mas ele acontece de modo mais vagaroso e menos glamouroso do que esperamos (e gostaríamos). Amar — a Deus e ao outro — exige prática contínua, submissão a ritmos repetitivos que deformem o nosso instinto pecador e nos formem na santidade do amor. Casais levam anos para desenvolver intimidade, criar filhos é um processo vitalício, cultivar amizades profundas demanda tempo, refinar competências profissionais exiges constância a longo prazo. Note que a combinação tempo e prática não limitam o florescimento, mas o fomenta. Não é diferente na espiritualidade.
Nosso coração jamais será sabiamente moldado se não for intencionalmente treinado, sem que perseveremos humildemente em disciplinas formativas. Não viveremos com Cristo e como Ele a menos que cultivemos práticas pedagógicas de santificação — disciplinas que nos ajudem não a usar, mas desfrutar do tempo como espaço para o crescimento, caminhos que nos levem à comunhão com Deus e à comunidade mútua. Treliças que emoldurem, sustentem e façam frutificar a semelhança com Jesus.
Ser formado à imagem de Jesus não é algo que fazemos tanto quanto algo que é feito em nós, pelo próprio Deus, à medida que nos submetemos à sua obra de graça transformadora. Nosso trabalho é principalmente estar disponíveis.
— John Mark Comer / Spiritual Formation Is Becoming Like Jesus
A minha própria rotina me tem feito pensar sobre disciplinas e práticas para o dia a dia — da oração, passando pela solitude, até o descanso e tantas outras. Neste espaço vou, ao longo do ano, explorar os caminhos para uma espiritualidade atenta para tempos distraídos e um discipulado integral numa era fragmentada.