As Olimpíadas passaram e, como é típico de quando grandes eventos se despedem, fica aquele vazio teimoso (para quem é fã de futebol, a abstinência pós-Eurocopa mal tinha passado quando os jogos olímpicos se foram. Pois é, agora o que resta pela manhã é só trabalho mesmo. Os jogos de foram deixando para trás uma pilha de memes, um amontoado digno de medalhas, fotos icônicas e conquistas icônicas de atletas queridos. E, claro, derrotas doídas, mas inevitáveis e pedagógicas.
Quando atletas testemunham
Vejo também que Paris 2024 deixou uma série de questões profundamente teológicas. É curioso (e impressionante), como nem um cenário radicalmente secularizado — ou seja, que deixa de fora das quadras a religião — não consegue escapar de aspirações e invasões espirituais. Claro, religião e esportes se entrelaçam desde a gênese dos jogos. Importante lembrar também que os esportes funcionam como liturgias culturais, simulando a natureza litúrgica da religião (não falamos sobre "templos do futebol" por acaso, não é?).
Mas o que há de espiritual num evento que desafiou (irreverente e atrevidamente) um símbolo sagrado milenar para fins de propaganda ideológica? Erwan Cloarec, presidente do Conselho Nacional de Evangélicos da França (CNEF) disse em entrevista à Christianity Today:
Uma das coisas que nos desagradou na cerimônia de abertura foi que ela teve a bênção do chefe de estado e representou a República da França, o que significava que tinha que garantir que nenhum cidadão se sentisse excluído ou alvo. O secularismo, que garante a neutralidade do estado, é um valor forte na França. E ainda assim, tivemos a sensação de que, nessa cerimônia de abertura, a república não respeitou esse princípio de neutralidade, mas, em vez disso, direcionou-se a uma religião em particular, especialmente ao evocar a Última Ceia.
Não é novidade que o cristianismo não está em alta nas praça e pódios. Contudo, vale dizer que este próprio ato já é por si só religioso. Não há arte não religiosa. Qualquer iniciativa cultural confessa uma fé e protesta em favor dela — seja ela o progresso humano, um ideal de liberdade, a autenticidade, o eu mesmo. Sim, episódios do tipo abrem feridas entre a igreja e a esfera pública, mas podem abrir também diálogos — e assim a possibilidade de testemunho das boas-novas. E é o que fazemos aqui.
Paris 2024, apesar do clima cultural hostil à confessionalidade cristã, também foi marcada pela expressão de fé pública de diversos atletas. Muitos deles brasileiros. Não à toa, uma das fotos mais icônicas da competição, registro do surfista Gabriel Medina feito por Jerome Brouillet, tem forte conotação religiosa. João Guilherme Züge, historiador de religiões, escreveu: "É como se ele estivesse dizendo: ‘Não é para mim que você deveria estar olhando, é para Deus. Este momento de glória não é meu, mas dele." Reinaldo Olécio Aguiar, sociólogo e pastor presbiteriano também explica:
Quando os cristãos veem um jogador fazer uma bela jogada, marcar um gol em uma partida importante e depois comemorar com o dedo apontado para o céu, eles se sentem representados. Mesmo sabendo que faziam parte de uma minoria [naquela época], eles podiam se considerar vitoriosos. — Reinaldo Olécio Aguiar
A beleza em movimento
Porém, quero convidar você a pensar que o evangelho dá as caras nas Olimpíadas não só quando atletas, de coração, professam que “Jesus te ama” ou orem em frente às câmeras. O que por si só é importantíssimo para reivindicar a relevância e reconhecer a voz do povo de Deus presente na cultura. Para além disso, todavia, o Reino se revela também em cada salto feito, saque dado ou suor derramado; nas manobras, corridas, dribles. Há virtude no empenho esportivo, perseverança e superação, na pluralidade cultural e até na competitividade harmoniosa. Há sinais de glória no movimento. O mundo é o teatro e a arena da glória de Deus. Quem melhor que o querido Emilio Garofalo para nos lembrar disso?
Há beleza, para começar, no jogo em si. Beleza num passe preciso, numa finta homérica, num gol de placa. Beleza no esforço por uma bola que parecia perdida, no fôlego para uma última corrida desesperada, na comemoração do gol improvável. — Emilio Garofalo, Futebol é Bom Para o Cristão
O esporte mexe com nossos afetos. A ginástica, o vôlei, o futebol e tantos outros fazem da capacidade técnica motivo para o deleite estético. Ou que Derek Thompson chama de “aha! estético” — e que no meu livro argumento que ressoa nosso instinto para o maravilhamento (corre lá no capítulo 6!). Mesmo o atleta mais descrente obedece ao Eterno, Criador e sustentador de todo ser que respira — e dá duplos mortais. Pra mim, nada além da realidade do Deus trino explica passes de três dedos e bloqueios triplos. É um respiro de encantamento numa cultura de ceticismo e um convite de graça num mundo de idolatria. Sobre isso, Steve DeWitt é certeiro:
Quando vivenciamos um momento de beleza, devemos transformar a admiração em adoração, agradecendo a Deus por sua bondade em proporcionar isso, por sua criatividade em criá-lo ou simplesmente pelo prazer que temos em vivenciá-lo. — Steve DeWitt, Eyes Wide Open
Prefigurando a nova criação
As Olimpíadas celebram a beleza cinética e acenam à criatividade divina de um Deus que nos fez capazes criar com o corpo. Afinal, Ele viu que o mundo era bom e belo. Penso que esta é a base para re-imaginarmos os esportes. Contemplar a beleza do esporte exige abrir os olhos e o coração — ou os olhos do coração — para ver um Deus que se descortina no mundo. E somente Cristo para abri-los para fazer com que a ver a criatividade esportiva vejamos relances da boa criação e lampejos da nova criação (alguém sabe se vai ter esporte no céu? Talvez 1Coríntios 15.35-39 dê uma pista). Faz parte da jornada de conversão cristã aprender a olhar para as coisas do alto para assim ver com novos olhos as coisas da terra.
O esporte é mais que um jogo, menos que um deus e quando transformado pelo evangelho, pode ser recebido como um presente para ser aproveitado para sempre. — Jeremy Treat, Mais que um jogo: uma teologia do esporte
Não, o cristianismo não está em alta nas praças e pódios. Mas cabe aos discípulos responder em amor criativo. Além de lembrar que a beleza da criação é apologética em si. Não há um centímetro quadrado sequer das gramados, tatames, piscinas e quadras que Cristo não reivindique como Rei. O esporte prefigura a alegria da nova criação, onde a Mesa do Senhor será não uma paródia, mas a celebração da vida plena.