The Boys e a idolatria das celebridades
The Boys, criada por Erick Kripke e baseada nas HQs de Garth Ennis e Darick Robertson. não é uma série amigável. O apelo gráfico, violência e conteúdo sexual explícitos incomodam e tornam a produção facilmente não recomendável. À parte dos excessos, contudo, a trama amarra — sem poupar ironia e até o cinismo — diversas críticas. Os alvos? De modo geral, a cultura hiper-capitalista contemporânea e o jeito americano de ser (que como você bem sabe vai bem além dos EUA). O teor crítico é de fato a maior força da série.
Caso não conheça (ou não se sinta confortável para conhecer), The Boys conta sobre um mundo em que humanos e super-humanos convivem. Os heróis são moldados, manipulados e monetizados pela corporação Vought. Basicamente, uma indústria de heróis. Sendo assim, The Boys retrata a falência moral e o caráter desprezível desses que, ao invés de lutar pelo bem comum, tornam-se celebridades egoístas e corruptas. O símbolo desse mercado de heróis são Os Sete (óbvia referência à Liga da Justiça). E a trama progride enquanto os justiceiros não convencionais dos The Boys tentam derrubar o sistema em torno da corporação de heróis.
The Boys retrata a falência moral e o caráter desprezível desses que, ao invés de lutar pelo bem comum, tornam-se celebridades egoístas e corruptas.
A série, com sua acidez vulgar, tece comentários sobre uma variedade de temas típicos da sociedade contemporânea: consumismo, a tirania das grandes corporações, polarização política (cada vez mais, inclusive), etc. Mas todos se encontram neste: a cultura da celebridade. No universo da Vought os heróis são manufaturados. Na nossa cultura hiperconectada também. Quem nos ajuda a pensar sobre a inflação das celebridades da mídia e sua influência na igreja evangélica (o que é assunto para outro artigo) é (super) perspicaz Katelyn Beaty em Fama, Dinheiro e Influência. Sua definição sobre “celebridade” é muito útil:
Para os propósitos deste livro, gostaria de definir "celebridade" como poder social sem proximidade. Colocamos celebridades em pedestais e, lá do alto, elas nos influenciam, inspiram, entretêm e exortam. Em um nível, o diferencial de poder entre nós e elas é evidente. (p. 27).
Penso que há uma fina relação entre a concepção contemporânea de celebridade e a antiga teologia bíblica da idolatria — da imagem que vira deus. Aliás, falo bastante sobre a cultura da celebridade lá no meu livro Pós-créditos, no capítulo 4 (corre lá pra ver). Eu diria que, biblicamente falando, criamos celebridades porque fomos criados para ser imagem de quem nos criou. Há um que de religiosidade por trás da nosso apego por celebridades, há uma linha tênue ser fã e ser devoto, entre templos de pedra e fandoms digitais. Não à toa o jornalista Derek Thompson em Hitmakers, descreve a cultura pop como um amontoado de “milhões e pequenos cultos”. E The Boys explora certeiramente o asqueroso processo de ascensão, queda e omissão da fábrica de celebridades.
Há um quê de religiosidade por trás da nosso apego por celebridades, há uma linha tênue ser fã e ser devoto, entre templos de pedra e fandoms digitais.
Desse ponto de vista, faz sentido dizer que a força sobre-humana dos heróis da Vought é nada mais que um acessório se comparado ao poder de influência a eles concedido. Ou melhor: fabricado. Uma violência da influência. Quando as celebridades midiaticamente manufaturadas exercem seu poder sem proximidade, arrancando nosso compromisso mais radical. Isso acontece porque celebridades são capazes de gerar forte conexão emocional com seu público. Pense no aguerrido fandom de uma cantora pop ou nos seguidores que se sentem parte do dia-a-dia de um influencer no Instagram, por exemplo. Como sabemos, porém, é uma intimidade enganosa. É o tipo de devoção que articula o que há de mais crítico social e politicamente falando — de relações abusivas à políticas autoritárias. Beaty diz:
É verdade que a maioria de nós não tem santuários literais para nossos atores, líderes ou influenciadores predile-tos. Mas, no recôndito de nosso coração, de nossa atenção e de nossa carteira, a fascinação por celebridades muitas vezes cativa nossa imaginação em medida maior do que a atenção que dedicamos a Deus e a outros portadores de sua imagem. (p. 25)
Não devo trazê-lo até aqui para propor: “Encontre Jesus em The Boys” (como fazem tentativas tortas de relacionar fé e cultura pop). Mas devo dizer: você vai reencontrá-lo quando, como a série, derrubar os seus próprios ídolos. Vale sempre o lembrete: a cultura pop talvez não te ensine nada sobre Deus, mas com certeza ensinará sobre as criaturas dele — pessoas caídas que contam histórias em busca de redenção.
Outro lembrete indispensável sobre arte e cultura pop é este: narrativas culturais tendem a ser falhas em suas respostas, mas certeiras em nos ensinar a fazer perguntas. E, ao meu ver, a difícil questão que The Boys nos propõe é esta: até que ponto a nossa atenção, imaginação e o nosso coração estão entregues às celebridades que a cultura fabrica? O quanto dos nossos afetos repousam no amor frágil entre ídolo e fã e o quanto nossa visão da sociedade é formada ou deformada pelos heróis que manufaturamos?